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Tomás era um menino solitário.
Seus dias eram rítmicos. Ele gostava de jogar bola no quintal do fundo.
Quicava na parede devagar, e voltava meio desajeitada.
A avó chamava pro almoço, e ele ia.
Arroz, feijão, batata e macarrão.
Quando a mãe voltava do trabalho, Tomás normalmente dava um sorriso.
Ele gostava de tomar banho, porque as mãos quentes da sua mãe percorriam sua testa, por debaixo da franja – sensação que ele não se esqueceria, mesmo a memória sendo frágil.
Tomás não ia pra escola.
Ele queria tanto não ir pra escola, que não foi.
Cansadas de argumentar, mãe e avó cederam, e por outro lado acabaram gostando do conforto dos muros que protegiam a integridade física e emocional do menino.
Tomás era pequeno.
Seu avô tinha sido psiquiatra, e ele, aos 8 anos, já tinha lido boa parte dos livros que se empoeiravam no antigo escritório.
Tinha aprendido a ler com a tia em dois fins de semana.
Seu assunto favorito era o funcionamento da mente humana e, enquanto chutava a bola que repicava no muro, pensava em como a bola se sentia.
Tomás criava formigas.
Pegou um aquário que havia sido do seu falecido avô e, depois de assistir alguns videos de como criar colônias de formiga, se sentiu pronto.
Achou um estojo de ferramentas médicas e se dedicava todos os dias a reposicionar pequenas pedras e folhagens com muita gentileza, com o auxílio de uma pinça de cabo longo.
Tomás tinha letra de adulto.
Ele usava o caderno de caligrafia que a tia deu de presente pra anotar o progresso dos seus experimentos, além da colônia de formigas, ele organizava as anotações e as fotografias antigas do seu avô, e escrevia largamente sobre o sentimento dos seus objetos mais estimados – como a bola, o aquário, a pinça e o caderno de caligrafia.
Tomás tinha cinco primos.
Ele preferia a companhia dos objetos, não só por eles não gritarem e correrem sem algum critério aparentemente lógico, mas principalmente porque no silêncio das suas trocas, Tomás podia sentir o que os objetos sentiam, e escrever sobre a linguagem invisível da matéria.
Era natal quando Tomás ganhou uma bicicletinha verde, obviamente com rodinhas.
Sua mãe insistia em atividades culturalmente aceitas como infantis porque queria muito enxergar no filho uma criança como qualquer outra, e quem sabe, se vestir da falsa segurança da previsibilidade e do tédio.
Um ano se passou, e a bicicletinha verde, largada num canto árido do quintal do fundo daquela casa amarelo pálido, manifestou seus primeiros sinais de ferrugem.
Chovia e Tomás fazia dobraduras de papel.
Ele gostava muito de pensar com as mãos.
Riscava o papel com as unhas recém cortadas pra reforçar a dobra.
Ele tinha um jeito gentil de se movimentar.
Escreveu no seu caderno de caligrafia frases como “o papel pode se transformar em qualquer coisa.”, “o papel sabe quando se transformou em um barco.”, “o papel emite sons diferentes dependendo do objeto em que se transforma.”.
Tomás não sabia, mas ele era alquimista.
Um dia, seu tio escritor veio visitar. Eles ainda não se conheciam pessoalmente, o tio se mudou para a Austrália quando jovem, e desde então, morou em muitos países escrevendo histórias e ajudando outras pessoas a escreverem suas histórias também.
Tio Maurício foi o primeiro amigo de Tomás.
Eles passaram a se corresponder por cartas – apesar da facilidade do correio eletrônico, parecia muito mais apropriado.
De vez em quando chegavam postais.
O quintal agora parecia pequeno. Tomás queria conhecer o mundo.
A partir daí, ele começou a entender o dinheiro como ferramenta de manifestação de desejos.
Tomás não concordava com o capitalismo, e quanto mais entendia do funcionamento do mundo, mais encontrava falhas na forma de pensar e construir da humanidade.
Mas seus anos documentando hipóteses e descobertas sobre seu universo minúsculo lhe ensinaram muito sobre paciência.
Ele sabia que o pequeno esforço diário era o fator mais importante para o progresso. Ele sabia persistir.
Montou uma espécie de barraca de feira na calçada e começou a vender todos os objetos da casa que estavam tristes – assim esses objetos poderiam ser felizes em outros lares, e ele poderia juntar algum dinheiro.
Vendeu a bicicletinha verde, livros que se sentiam inúteis, e alguns brinquedos antigos.
Sua mãe e avó se sensibilizaram, e logo talheres de prata há muito abandonados foram postos à venda junto com casacos de pele que nunca fizeram sentido para o calor maçante daquela cidadezinha portuária.
Logo, alguns vizinhos também se entusiasmaram com a possibilidade de fazer trocados ao mesmo tempo que destralhavam suas casas, e organizaram uma feira de desapegos.
A feira foi um sucesso.
Tomás escreveu uma longa carta para Tio Maurício contando sobre como todo mundo agora estava mais feliz – inclusive os objetos.
Ele começou a relacionar a alegria ao movimento.
Quatro anos depois Tomás comprou um pequeno barco a motor com a pintura desgastada. O casco era branco, e a parte de cima, que cobria a cabine, azul celeste.
Chamou o barco de “minke”, em alusão à baleia-minke, a menor baleia do mundo.
Pedia à avó pra separar o almoço pra viagem, colocava na mochila alguns instrumentos médicos, um ou dois livros, um caderno de anotação. Tirava uma maçã da fruteira, jogava pro alto, guardava no bolso da bermuda larga, e partia em direção ao porto.
À noite, quando o silêncio fazia com que o farfalhar das ondas acabando no casco aumentasse, Tomás se transformava no barco e dormia.
A sensação de poder cruzar os oceanos alongava o coração de menino.
Escrevia cada vez mais e voltava pra casa cada vez menos.
Sua coragem transformou o mar em quintal.
A avó e a mãe se revezavam pra levar comida até o porto.
Dona Eneida esbanjava uma força lúcida num corpo de 84 anos. A caminhada oxigenava sua gratidão pelo simples da vida.
Mesmo, e principalmente, quando chovia, ela amarrava com convicção um paninho de prato com frases prontas em volta do almoço de Tomás e seguia firme até o barquinho do neto.
Às vezes eles rumavam juntos mar adentro. A avó gostava da sensação do vento encostando nas suas rugas.
Marília dizia que não gostava de água. Mas uma vez foi. Tomás segurou a mão da mãe durante todo o passeio.
Um dia a tempestade virou o barco.
Tomás não sabia nadar.
Afundou gentilmente, como era de seu feitio.
Deixou os olhos bem abertos, porque não conhecia o fundo do mar.
🔭#8 o pequeno alquimista
Estou escrevendo qualquer coisa porque nem sei o que escrever depois de ler esse texto, mas queria deixar esse registro de que li esse texto e fiquei sem saber o que escrever.
Awn que lindo.
😍 amo seus textos.
você é incrível demais.
Achei muito massa essa news ser um texto assim, tão cheio de riqueza de detalhes.
saudades
bjitos